terça-feira, maio 23, 2006

Ruas Escuras

...E era tarde e eu já vinha por aquela rua escura. Na verdade, fiquei um pouco feliz em não ver aquela multidão de gente com celulares nas orelhas, falando de negócios e de desejos humanos. Era como um retiro espiritual para mim. Passar justo no centro, naquelas altas horas da noite me fazia pensar se realmente valia a pena viver num mundo capitalista, sendo que a noite o único produto a venda que eu via naquelas ruas eram as meretrizes e travestis que ali se prostituíam. Que mundo era este, afinal, que o dinheiro podia comprar?

Eu estava bem naquela rua. Ainda até passou por mim uma viatura da polícia. Uns dois ou três soldados dentro daquela caminhonete olharam para mim como uma cara de “que horas são essas para o moleque estar na rua”, mas eu não me importei. No máximo, iriam me dar uma dura e mandar eu ir para a minha casa. Tudo bem, eu tava acostumado com isso mesmo.

Parei numa padaria que tinha ali. Pedi um lanche de mortadela e fiquei esperando. Neste instante pensei nas coisas que eu poderia ter feito naquela noite e num fiz. Sei lá, num sou desses moleques que fazem o que todos os outros fazem. Eu apenas penso. Acho que penso desde o meu primeiro hálito de vida nesta terra. Acho que se me esforçar, me lembro até do dia do meu nascimento até aqui. Penso muito. Penso em tudo.

Penso nas coisas que eu perdi. Sabe, acho que sei porque eu penso tudo isso. Pois é como eu sobreviveria aqui. E aprendi a ser otimista. Afinal, desgraça maior às que já aconteceram não poderia acontecer.

Sabe, eu lembro da minha mãe chorando quando eu nasci. Mas lembro também que ela me deixou num sacola plástica na rua, da qual uma família mais pobre que ela ainda me achou e me criou. Pelo que me lembro, ficaram com medo de mostrar a criança à polícia e serem pegos com os “bagulhos” que eles tinham no bolso para aquela noite. Eu diria que sai da panela pra cair no fogo. Bom, fiquei grandinho, e pensando notei que tinha que cair fora daquela família. Se é que aquilo era família. Mas, tá bom, eles me deram de comer e de vestir por um tempo. Sou grato, mas eu acho que todos deveríamos querer mais que apenas isto.

Hoje, eu perambulo pelas ruas. Peço um lanche nas padarias. Às vezes um tio ou outro até dá uma tubaina pra eu beber. Mas não aceito o que este mundo vem querendo vender pra mim desde que sou pequeno. Desde que nasci. Quis vender pra mim que eu não tenho importância. Quis vender pra mim que eu sou um desventurado. Quis vender pra mim que eu sou um menino maltrapilho, ou vagabundo como os que se prostituem na noite dessa rua que eu ando. Mas eu sei que sou mais que isso.

Um dia, um senhor me deu um livrinho. Nele tinha um tal de “Salmos, Provérbios e o Novo testamento”. Um livrinho de capa cinzenta, que falava de um cara legal que vivia assim como eu. Andava no meio dos pobres, mas ele tinha uma sacada diferente pois ele podia curar as pessoas. E esse cara falava coisas bonitas, que eu às vezes leio e não entendo, mas um dia entendi um trechinho e fiquei feliz: “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”.

Eu agora espero meu consolo. Pois, nada mais preciso esperar nesta vida. Posso ficar sem meus pais que nem sei quem são, senão os que me criaram; posso ficar sem o pão com mortadela que pedi na padaria e que o tiozinho me deu; posso ser pego pela polícia como um ruaceiro e acabar tomando uma surra; posso ser visto como mais um a me prostituir com aqueles outros coitados da noite; posso me sentir pobre por não ter um celular e não ter grandes sonhos; posso até ter medo das ruas escuras que estou caminhando agora. Mas eu sei que nunca, nunca vou ficar sem meu consolo.

Aquele cara legal prometeu isso pra mim.